Quando, no final dos anos 1980, o artista chileno Alfredo Jaar soube que na pequena cidade de Koko, na Nigéria, 3.500 toneladas de lixo industrial produzido na Itália haviam sido despejadas em barris enferrujados, contaminando a região e seus moradores, ele imediatamente voou para a África e registrou a cena.
Os custos da viagem foram bancados pela organização da mostra Magiciens de la Terre (mágicos da Terra), realizada no Centre Pompidou, em 1989, pelo curador Jean-Hubert Martin, considerada uma das primeiras exposições a rever a centralidade da produção ocidental na arte contemporânea. De fato, foi lá que Cildo Meireles despontou para sua carreira internacional com a instalação Missão/Missões, uma provocação à presença dos jesuítas no Brasil.
Outra obra icônica da mostra de 1989, Geografia = Guerra, esta de Jaar, é vista agora em uma nova versão, bem mais ampla, na retrospectiva Lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia até 5 de dezembro. “Nesse trabalho eu abordo a relação desigual entre mundo desenvolvido e subdesenvolvido, como o que ocorre com as vacinas agora”, conta Jaar à arte!brasileiros durante a montagem da exposição.
O artista chileno é reconhecido por ser um dos mais perspicazes e precisos pensadores das relações de poder no mundo através das imagens. “Não sou fotógrafo, o que me interessa é a política das imagens”, conta Jaar. Assim, ao invés de espetacularizar as fotos que trouxe da Nigéria, ele as projeta em uma centena de barris, que simulam onde estava o lixo tóxico. Nunca é possível, no entanto, se ver a imagem por completo, como a indicar que, como aquelas pessoas retratadas e seus familiares tiveram suas vidas mutiladas, é preciso uma correspondência ética entre o que se vê e o que ocorreu. Não há indiferença na obra de Jaar, afirma Moacir dos Anjos, curador da mostra, que aponta no trabalho do chileno “um empenho que requer atar estética e ética coesamente, recusando qualquer separação estanque entre essas duas instâncias norteadoras de entendimento e de atuação humanas”.
Apesar de ter nas imagens o centro de sua reflexão, algumas obras da exposição são textos, que por seu lado remetem às imagens. É o caso do cartaz VOCÊ NÃO TIRA UMA FOTOGRAFIA. VOCÊ FAZ UMA FOTOGRAFIA, frase atribuída ao fotógrafo estadunidense Ansel Adams (1902–1984). Aqui se percebe o caráter filosófico de Jaar, primeiro pelo aspecto reflexivo: quem visita a exposição é convidado a perceber como uma imagem é mais uma construção do que um ato documental. Depois, pelo aspecto democrático, ao partilhar sua obra, já que é permitido o cartaz.
Além do cartaz, aliás, também está disponível ao público o postal Um milhão de pontos de luz, uma foto feita do oceano Atlântico em Luanda (Angola), na direção do Brasil, de onde saiu grande parte dos escravizados que para cá foram trazidos, uma estimativa que alcança 3,5 milhões de pessoas. A imagem, no entanto, é quase abstrata, pois o que se vê é apenas o reflexo do sol no mar, mas que se distribui em pontos luminosos que evocam a violência que a travessia no Atlântico representa.
Este é outro exemplo do tratamento que Jaar dá às imagens. A fotografia do postal está projetada em larga escala na mostra, mas quem apenas observa a imagem não percebe de imediato seu caráter político, sendo preciso ler o texto no postal para compreender a contundência da foto. “Somos analfabetos visuais”, constata o artista. Por isso, parte de seu trabalho está em provocar um estranhamento que tire o visitante da zona de conforto. Afinal, mesmo com a produção de três bilhões de imagens por dia, como diz Jaar, “ninguém ensina a ver”.
A mostra no Sesc Pompeia, local escolhido pelo próprio artista após visitar outros lugares, ocupa o espaço de maneira exemplar. “Sou arquiteto por formação, então sempre respondo ao contexto e tudo aqui está na escala do espaço”, conta o artista.
Para a exposição no Sesc, ele também criou um novo trabalho, novamente um texto, o neon roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, o famoso trecho do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado na Revista de Antropofagia, em 1928. “Na confusão em que vivemos, é preciso novos modos de pensar o mundo”, afirma Jaar.
Essa confusão se reflete na famosa frase do pensador e político Antonio Gramsci (1891–1937): “Nesse claro-escuro, surgem os monstros”, escrita em 1930, durante o tempo em que esteve preso na Itália, entre 1927 e 1937 – um período de grandes conflitos, especialmente pela ascensão do fascismo, um momento politicamente muito semelhante ao atual. Os cartazes desta frase estão disponíveis na Bienal de São Paulo, nas cores da bandeira brasileira, o que está longe de ser uma coincidência. Afinal, como explica o artista, “as imagens não são inocentes”.